“O Grande irmão está de olho em você, dizia o letreiro.” O escritor britânico George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair, 1903-1950) não poderia imaginar que o seu livro “1984” e a alegoria do Grande Irmão se tornaria um fenômeno da cultura de massa no maior país da América do Sul. O Big Brother Brasil suplantou o simples conceito de uma casa vigiada por câmeras. Tudo o que acontecia naquele lugar ganhava ressonância nas mídias sociais. Hoje, não existe apenas o Grande Irmão vigiando, mas uma legião de patrulheiros.
No Twitter, vigiam a sua opinião. No Instagram, a sua beleza. No LinkedIn, a sua carreira. No TikTok, a sua descontração. No Facebook, uma mistura de tudo isso.
O mundo digital pode ser comparado a uma arena de vigilância. As pessoas estão preocupadas com a cultura do cancelamento e de não serem aprovadas por essa patrulha de virtudes. Se um cidadão está vulnerável, imagine uma empresa. Na velocidade da informação, as pessoas se deram conta que o tempo é um bem precioso. As telas dos consumidores mostram uma oferta sem fim de produtos e serviços, mas a falta de apoio às questões sociais ou ambientais são fortes razões para o boicote e qualquer deslize pode custar muito caro para uma marca. Desde uma propaganda que desagrade formadores de opinião ou até situações pontuais, tudo pode ser motivo para a empresa ter problemas de imagem ou ser silenciosamente eliminada da preferência dos consumidores.
Esse movimento é natural e demonstra cada vez mais que a decisão de compra não é só racional, mas também emocional. Ao compreender este campo de batalha, é possível lançar um novo olhar para o futuro e estabelecer uma trégua entre as relações.
As empresas que conseguem emitir opiniões alinhadas aos pilares das suas marcas, demonstram capacidade em sustentar seus valores, missão e normas de conduta, construindo narrativas consistentes ao longo do tempo.
Outro fator que pode proteger uma empresa dos riscos das mídias sociais é avaliar a memória afetiva do público de acordo com marca, produto ou serviço.
Nesse cenário, podemos encontrar muitas preciosidades. São marcas e produtos muito bem construídos e que demonstram sintonia dos valores da empresa e com a expectativa dos clientes. Um exemplo é a Fjällräven, uma marca sueca de roupas e equipamentos outdoor, que acaba de ganhar pelo segundo ano consecutivo o prêmio “O Sustainable Brand Index ™2021”, o maior estudo de marca realizado na Europa sobre sustentabilidade. Chegar a esse ponto de reconhecimento pelos consumidores deixa claro o princípio integrado em todas as ações da empresa, que busca fazer parte de uma história próxima à natureza e ao respeito humano.
A marca iniciou suas atividades em 1960, mas a ideia surgiu dez anos antes, quando Åke Nordin, com apenas 14 anos, estava incomodado com o desconforto causado pela sua mochila em suas caminhadas nas montanhas. Então, foi para o porão de sua casa e fez a sua primeira mochila, contando com a máquina de costura da mãe e das ferramentas do pai. A mochila tinha espaço suficiente para colocar mais equipamentos e tinha com um diferencial: uma estrutura que distribuía melhor o peso nas suas costas.
Com o compromisso de proporcionar às pessoas a possibilidade de aproveitarem ao máximo a vida ao ar livre, a marca trouxe o foco para a produção de equipamentos funcionais, duráveis e atemporais. No final da década de 1970, no entanto, a empresa teve uma nova oportunidade de reforçar sua posição. Um debate dividia a opinião pública na Suécia, porque estatísticas mostravam que quase 80% da população sofreriam de dores nas costas em algum momento da vida. Médicos e consultores de esporte expressaram sérias preocupações sobre as costas dos alunos que carregavam o peso dos seus livros em bolsas de um ombro só, que estavam na moda. Atento à discussão, Åke Nordin decidiu projetar uma nova mochila. Foi assim que, em 1978, em cooperação com a Associação Sueca de Guias e Escoteiros, a empresa lançou o modelo Kånken, um produto acessível, durável e funcional. Além disso, era considerada boa para a postura. Feito há mais de 40 anos, o produto possui o mesmo design e material e, assim, tornou-se um carro-chefe de sucesso. A empresa – literalmente – endireitou uma geração e ganhou o mundo, reforçando ainda mais os diferenciais da marca; atemporal e sustentável.
Outro caso interessante aconteceu em 1986. Foi a vez de a professora e escritora americana Pleasant Rowland marcar época. Ela queria encontrar bonecas que servissem de inspiração para as suas sobrinhas. Não encontrou. Resolveu criá-las. Então, aos 45 anos de idade, criou a American Girl, uma boneca bem feita e com precisão histórica. Ao incorporar garotas de diferentes épocas, a escritora adicionou personalidade e conteúdo. Assim surgia Kirsten, uma imigrante pioneira de força e espírito crescendo em Minnesota de 1854 ou Samantha, uma órfã vitoriana de 1904, cheia de opinião e preocupada em tratar todos com dignidade e respeito. Cada boneca tinha a sua própria identidade e vinha acompanhada de um livro, uma fita cassete e uma coleção minuciosamente detalhada de acessórios opcionais. Todas eram vendidas por catálogo.
Comprometida com a igualdade racial, a marca também se mostrou inclusiva. Além da linha histórica, lançou em 2001 a coleção de bonecas do ano. Desde então, elas representam temas da atualidade. Porém, o diferencial que selou a aproximação do público com a marca, foram as variações de modelo e as possibilidades de customização. O cliente é convidado a montar a sua boneca e pode fazer mudanças drásticas das originais. É possível escolher a personalidade, o formato do rosto, a cor da pele, sardas, a boca, os olhos podem ter sua forma, tamanho e cor modificadas e o mesmo ocorre com os cabelos. Além disso, estão à disposição acessórios como aparelho auditivo, óculos, cadeira de rodas, muletas, entre várias outras alternativas de personalização, para inspirar a imaginação. E esta é uma grande força da American Girl. Ela ajuda na autoestima das crianças, que se enxergam na boneca. Aquela parceirinha não é um mito de perfeição, mas do jeito que tem ser.
Vendida para a Mattel em 1998, a marca que possui lojas preparadas para experiências, sofreu com a pandemia, que tirou as pessoas das lojas e diminuiu o turismo, mas apostou forte na presença em mídias sociais e nas vendas digitais. Conquistou um crescimento de 12% no último trimestre de 2020.
“Vale pontuar que a Fjällräven e a American Girl souberam navegar no meio de tempestades. São exemplos de como se posicionar em terrenos hostis e permanecer firmes, mesmo com todos os desafios diante da opinião pública.”
As duas empresas têm o grande mérito de contar as suas histórias em conjunto com os clientes, evoluindo a cada ano. E esse sentimento de pertencimento é passado de geração em geração.
Esses “cases” mostram que construir conexões positivas com os clientes aumentam a longevidade dos negócios. Parte importante da estratégia é valorizar momentos de interação, estreitando laços de contribuição sempre monitorados de forma consistente e frequente.
A metáfora do Grande Irmão pode colocar medo em muita gente. Porém, assim como acontece em um “reality show” ou na ficção, são os sentimentos humanos e sinceros que alicerçam as relações e dão charme ao enredo. Isto vale para pessoas e empresas. Os valores ganham força quando são vividos de verdade, mantêm as pessoas unidas aos seus ideais e as protegem nas eras mais turbulentas. Até mesmo quando a ameaça não passa de um simples post.
Andreia Mariano
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